Por Cláudia Fonseca
 Se você pudesse viajar no tempo para um período anterior ao da industrialização, em que máquinas passaram a construir em grande escala o que mãos humanas jamais conseguiriam fazer, poderia se surpreender com a forma como as pessoas compreendiam os bens de consumo. Um sapato, por mais que estivesse na moda, era apenas um sapato que talvez durasse a vida inteira. Aliás, ele era confeccionado com esse exato objetivo: durabilidade. Hoje, um sapato é apenas mais um sapato dentro de sua gaveta, que guarda pares de variadas cores e modelos, que devem se adequar a cada situação.
Um sapato não é apenas um acessório do seu vestiário, que vai permitir a proteção e o conforto de seus pés. Pelo contrário, alguns deles vão machucar bem mais do que se você andasse descalço pelas ruas. Um sapato pode indicar seu poder aquisitivo, seu bom gosto, até mesmo sua forma de pensar. A marca do sapato pode definir a sua capacidade, dar poder e fazer com que as pessoas te admirem e respeitem.
Para os mais velhos, esse discurso pode soar absurdo. Mas para aqueles que cresceram em meio ao boom da sociedade capitalista incentivada pela propaganda, a coisa funciona de forma diferente. “Os jovens de hoje são filhos da televisão. Eles não cresceram nas ruas brincando com os amigos, jogando bola. Eles cresceram assistindo propaganda na TV. Esse tipo de conteúdo tem um grande impacto na cabeça de uma criança que não tem capacidade nem discernimento do que quer ou não quer”, declara o economista Jardel Leal. Seguindo essa lógica, não se pode negar que esse grupo tenha adquirido valores diferentes dos das gerações anteriores.
O fato de os jovens serem os mais atingidos não significa que pessoas de outras faixas etárias também não sofram com o bombardeamento dessas informações. Basta questionar os consumidores que entram nas lojas de sapatos e confirmar. Eles realmente precisam de um calçado ou apenas querem comprar algo novo e diferente? Nada a condenar se a resposta for a segunda opção, mas o questionamento não se resume a isso. Se ele vai comprar apenas porque quer, o valor desse sapato está realmente de acordo com suas condições financeiras, ou ele vai precisar se endividar para conseguir o modelo que deseja?
O problema surge quando o indivíduo começa a gastar mais do que tem para satisfazer um desejo que nem mesmo ele compreende. “O que importa para a sociedade capitalista não é a necessidade, mas a disposição em adquirir produtos. A propaganda incita você a pensar que se tiver o celular x ou y vai estar integrado ao mundo inteiro”, diz Jardel. De fato, não se pode condenar alguém por querer fazer parte de um grupo mais seleto ou sustentar seu poder de compra. O problema é que essa necessidade pode ultrapassar uma simples vontade de satisfação e atingir o nível patológico. Nesses casos, a pessoa perde o controle sobre o comportamento. Ela sente necessidade de comprar, sua ansiedade incomoda e ela acredita que só vai se sentir aliviada depois de consumir algum bem. Mas, na realidade, ela nunca fica satisfeita.
A t r i b u i r toda a culpa ao sistema econômico vigente seria exagero. Mas, segundo a psicoterapeuta Eliza Troian Rodrigues, ele contribui para agravar a ansiedade que impulsiona o quadro de comportamento compulsivo, que pode estar relacionado a uma série de fatores como a pré-disposição orgânica ao dispositivo do prazer e ao que a pessoa vai aprendendo ao longo da vida. “Vivemos em um mundo que estimula o consumo. Vejo a foto de uma linda modelo desconhecida, que usa determinado produto e atribui a ele sua beleza. Se não diretamente, pelo menos no meu inconsciente vou achar que posso ficar igual”, explica a doutora.
Antes da revolução industrial, quando a produção excedente não era uma prática, não havia a necessidade de incitar os consumidores a comprar. Mas com a confecção em massa, tudo muda. Para convencer o cidadão comum a consumir e fazer com que o sistema que se baseia no acúmulo de riquezas funcione, a propaganda é a melhor solução; atribui elementos de realização aos produtos, fazendo com que neles sejam embutidos juízo de valor, criando a necessidade de comprar o que antes poderia ser considerado supérfluo.
 Mas nem todos têm poder aquisitivo para sustentar o que gostaria de ser e entra no confronto entre o ter e o parecer, questão que foi objeto de estudo para o filósofo Guy Debord, que já nos anos 60 previu a problemática enfrentada pelo sistema capitalista nos dias atuais em seu livro A Sociedade do Espetáculo. “O indivíduo tem vergonha de demonstrar suas dificuldades de renda e esconde sua condição de pobreza, tenta demonstrar uma coisa que não é. A referência de padrão que ele tem é a dos privilegiados. Ninguém sonha em ter uma charrete, todos querem um carro importado para demonstrar que está bem financeiramente”, declara o economista Jardel.
Nesse meio, o aspecto emocional pode ser abalado, o que leva ao gasto compulsivo. Segundo Dra. Eliza, quando a pessoa se deixa levar pelo discurso da propaganda e começa a agir de maneira desenfreada, é sinal de que ela apresenta problemas que não estão necessariamente relacionados de forma direta à vontade de consumir. “Na realidade, ela enfrenta algum outro tipo de dificuldade, sente um vazio que acredita só ser preenchido quando compra alguma coisa”.
Nesses casos, apenas se queixar do comportamento do outro não é a solução. É preciso mostrar a pessoa que ela está doente a partir do diálogo, fazer com que entenda que reconhecer as fraquezas já é uma evolução pessoal. “Quem possui um bom autoconhecimento pode se proteger melhor da exposição da propaganda”, diz Dra. Eliza. Em casos mais graves, a terapia não é uma opção que deva ser descartada.
 Jardel explica que o sistema capitalista não pode sobreviver sem o acumulo de patrimônio, logo, pregar uma filosofia de vida mais equilibrada seria um confronto à sua ideologia. “O que posso dizer é que as pessoas deveriam buscar o exercício responsável do consumo equilibrado. A neurose dos que passam a linha do razoável em uma cultura de desigualdade brutal pode ter efeito explosivo”, alerta. Dra Eliza aponta outra solução: “Não devemos ver o mundo de fora para dentro, mas de dentro para fora”.
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